Dom Pedro II - créditos: divulgação
23-11-2025 às 10h16
Carlos Lima Junior*
Entre as preciosidades preservadas no arquivo do Museu Mariano Procópio encontra-se um significativo conjunto de cartões-postais endereçados à Amélia Machado Cavalcanti, viscondessa de Cavalcanti, e que trazem impressas no anverso de cada um deles imagens do “Château d’Eu”. O motivo dessa imagem reproduzida nesses postais não é de se estranhar: o castelo, situado na pequena cidade de Eu, ao norte da Normandia, foi residência da princesa Isabel e de seu marido, o conde d’Eu, durante os anos de exílio da família imperial na França e tornou-se, ao longo do tempo, pela coleção brasileira ali mobilizada, em uma espécie de memorial nostálgico da monarquia brasileira em solo francês.
Enquanto alguns desses postais registram diferentes ângulos exteriores do castelo, de modo a ressaltar a monumentalidade da construção, outros, por sua vez, trazem reproduções do interior da morada, como que a flagrar a intimidade de seus proprietários. Ao que tudo indica, esses postais foram fabricados a pedido da própria princesa Isabel e do conde d’Eu, em número de tiragem significativa, e destinados não só para o uso da própria família imperial, mas pelo círculo de defensores da monarquia, como suportes visuais de correspondência entre eles nos dois lados do Atlântico.
Um desses postais do arquivo do Museu possui a seguinte legenda: “Château d’Eu. Salon noir – Tableau de don Pedro”. Nele, vê-se em destaque o grande retrato de D. Pedro II em Uruguaiana, pintado em óleo sobre tela pelo artista francês Édouard Viénot (1804-1884), de 2,57 x 1,60 cm, e datado de 1868. A pintura aparece pendurada na parede e disposta sobre um móvel repleto de objetos, entre porta-retratos, luminárias e um relógio. Conhecido por “salon noir”, devido ao tom escuro da decoração e mobiliário ali presentes, ou mesmo “petit salon”, dado o tamanho reduzido dessa sala em comparação àquelas de dimensões significativas dentro da construção, esse espaço do castelo concentrava uma série de objetos provenientes do Brasil e saudava a memória de d. Pedro II, acionada não só pela presença ostensiva do retrato pintado por Viénot, bem como pelo busto do Imperador, em terracota, de autoria de Jean-Baptiste Claude Eugène Guillaume – hoje pertencente ao Museu Imperial, em Petrópolis.
Foi Zitinha Calógeras que endereçou o postal em questão, remetido não da França, mas da Suíça (Chalet-À-Gobet sur Lausanne), para a viscondessa de Cavalcanti, em 9 de julho de 1908. No verso, pode-se ler a mensagem encaminhada, cujas linhas, apesar de sucintas, evidenciam o grau de intimidade entre as duas interlocutoras: “Querida Viscondessa, Emquanto não lhe escrevo mais longamente aqui lhe envio as minhas affectuosas saudades. Recommendações de minhas irmãs, Sua Zitinha C. (Calógeras).” Zitinha era membro da família de origem francesa Calógeras, que emigrou para o Brasil no início da década de 1840 e tornou-se uma das mais proeminentes do Império ao alçar cargos políticos. Os Calógeras eram ainda próximos do casal d’Eu no exílio, uma vez que Miguel Calógeras, ao lado do diplomata e historiador Alberto Rangel, organizou o arquivo da Casa Imperial levado do Brasil para a França, e preservado dentro do castelo d’Eu antes de ser remetido ao Museu Imperial para a sua conservação, em 1948. A própria baronesa de Muritiba recordaria em suas memórias que, para o envio de muitos dos quadros do Brasil para a França, estiveram envolvidos os Calógeras, o que demonstra, mais uma vez, a intimidade dessa família com os exilados imperiais.

para viscondessa de Cavalcanti. 9 de julho de 1908. Arquivo Histórico Museu Mariano Procópio.
O retrato de autoria de Édouard Viénot, reproduzido com destaque nesse cartão-postal, pertencia, antes de ser remetido para a França, às coleções da residência oficial do Imperador na quinta da Boa Vista, na corte do Rio de Janeiro, junto de outros pertences preservados nos palácios do Rio, após a implantação da República, em fins de 1889. Viénot, apesar de estabelecido com ateliê em Paris, atendeu a uma clientela abastada do Império brasileiro para a produção de retratos, e chegou a ser agraciado pelo próprio Imperador em 1870 com o título de “Retratista e Fornecedor da Casa Imperial”. Ao artista francês seria confiado, ainda, a produção de outros retratos de membros da família imperial, como de d. Pedro II, de d. Teresa Cristina, da princesa Isabel e do conde d’Eu, e que igualmente foram levados do Brasil para a França, quando da queda do Império, e ficaram expostos no interior do castelo d’Eu. No caso do retrato do imperador e da imperatriz, ambos foram repatriados ao Brasil apenas em 1968, quando passaram a integrar o Museu Imperial, em Petrópolis. Havia ainda aquele de corpo inteiro de Pedro II que, após a queda do regime monárquico, foi transferido para o IHGB para ali ser preservado no culto de sua memória.
O retrato de autoria de Édouard Viénot, reproduzido com destaque nesse cartão-postal, pertencia, antes de ser remetido para a França, às coleções da residência oficial do Imperador na quinta da Boa Vista, na corte do Rio de Janeiro, junto de outros pertences preservados nos palácios do Rio, após a implantação da República, em fins de 1889. Viénot, apesar de estabelecido com ateliê em Paris, atendeu a uma clientela abastada do Império brasileiro para a produção de retratos, e chegou a ser agraciado pelo próprio Imperador em 1870 com o título de “Retratista e Fornecedor da Casa Imperial”. Ao artista francês seria confiado, ainda, a produção de outros retratos de membros da família imperial, como de d. Pedro II, de d. Teresa Cristina, da princesa Isabel e do conde d’Eu, e que igualmente foram levados do Brasil para a França, quando da queda do Império, e ficaram expostos no interior do castelo d’Eu. No caso do retrato do imperador e da imperatriz, ambos foram repatriados ao Brasil apenas em 1968, quando passaram a integrar o Museu Imperial, em Petrópolis. Havia ainda aquele de corpo inteiro de Pedro II que, após a queda do regime monárquico, foi transferido para o IHGB para ali ser preservado no culto de sua memória.

Coleção particular.
A pintura D. Pedro II em Uruguaiana rememorava um dos momentos iniciais do confronto bélico contra o Paraguai, quando d. Pedro II, após saber da invasão paraguaia no Rio Grande do Sul, em 1865, decide se deslocar até o “teatro da guerra”, a contragosto do conselho de Estado do Império, que se manifestava totalmente contrário a tal decisão. Nessa circunstância, o monarca assumia, na promoção de sua imagem, a figura do “rei soldado”, que se prestava a exemplo de “voluntário n. 1” pela causa brasileira. Desse modo, trajado de poncho, botas e chapéu, Pedro II se paramentava com as vestes típicas do sul do país, na afirmação de seu posto de chefe de estado fiel às tropas que combatiam pela preservação daquela parte do território nacional, cujo passado era marcado por ideais separatistas e, inclusive, republicanos. Sua figura imponente, em pé, está inserida em meio à paisagem de um acampamento, com as tendas montadas e um grande canhão posicionado; tudo para ambientar a personagem no momento histórico celebrado pela pintura.
A guerra contra o Paraguai (1864-1870) impulsionaria a fabricação de uma série de imagens, em diversos suportes e dimensões, entre elas gravuras, fotografias, ilustrações na imprensa, pinturas históricas etc., e muitas delas com vistas a exaltar o conflito armado e os “heróis” eleitos para o panteão bélico. O evento histórico recebeu atenção de artistas consagrados do Império, como Pedro Américo, que pintou a A Rendição de Uruguaiana, na qual d. Pedro II aparece montado em seu cavalo diante das tropas vencidas paraguaias. Apesar da pintura ter sido destruída, conhece-se a sua imagem graças à litografia feita por J. Reis, que integra o livro Quadros Históricos da Guerra do Paraguai e que consta no acervo do Museu Mariano Procópio.
Outro registro visual importante é a fotografia feita pelo italiano Luigi Terragno, que fotografou não apenas o monarca, bem como os genros, o conde d’Eu e o duque de Saxe, em Porto Alegre, por ocasião da passagem pelo Rio Grande do Sul em 1865. A foto ganhou tamanha repercussão que foi apropriada em outras obras, como é o caso da ilustração feita por Henrique Fleiuss, concebida para a Semana Ilustrada de 10 de setembro de 1865, na qual d. Pedro II, acompanhado do genro, o duque de Saxe, aparece diante do acampamento das tropas, e cujo exemplar pertence igualmente ao Museu Mariano Procópio. É muito provável que a foto feita pelo italiano Terragno tenha servido de matriz para a elaboração do retrato por Édouard Viénot. Vale observar que o castelo d’Eu (atual Musée Louis-Philippe) preserva um exemplar dessa fotografia em suas coleções, certamente por lá deixada após a venda do castelo pelos herdeiros da princesa Isabel ao empresário e jornalista Assis Chateaubriand, na década de 1950.

Musée Louis-Philippe, Eu, Normandia, França.

enviadas de Porto Alegre. In Semana Illustrada, Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1865. Quinto anno, n. 248. Edição 00248. p. 1983. Hemeroteca Digital Brasileira, BNDigital, Fundação Biblioteca Nacional, RJ.
Vale observar que d. Pedro II não chegou a morar no castelo d’Eu, uma vez que a propriedade foi adquirida pela princesa Isabel e pelo conde d’Eu anos depois da sua morte, ocorrida na capital francesa, em dezembro de 1891. Construído no século XVI, o “Château d’Eu”, ao longo dos séculos, serviu de morada para diferentes nobres franceses, ligados diretamente à família de Orléans. Entre eles, estava Ana Maria Luísa, conhecida como “Grande Mademoiselle”, figura influente na corte de Louis XIV. Mas foi no reinado de Louis-Philippe (avô do conde d’Eu), que foi empreendida uma série de reformas, naquela que era considerada a residência dileta desse monarca francês. O castelo foi o lugar escolhido por esse rei para sediar o evento histórico que ficou conhecido por “encontro cordial”, na ocasião da visita da rainha Vitória à França, em 1843, após mais de 300 anos que um monarca inglês voltava a pisar em solo francês. De seu histórico consta ainda a passagem de Marcel Proust, registrada pelo escritor em sua carta à mãe em 1899, na qual rememora o encontro com o próprio conde d’Eu. Em tom irônico, o autor de Em busca do tempo perdido confessaria: “o Conde d’Eu desliza pelo assoalho ao invés de andar, como se patinasse. Mas não ouso supor […] que se tratem de boas maneiras, sem saber se é preciso reconhecer nesse deslizar as crises de gota ou as lembranças da Corte.”
Após um grande incêndio destruir partes da construção em 1902, o conde d’Eu adquiriu a propriedade de seu primo, o duque d’Orléans, situada na pequena cidade da qual provinha o seu título nobiliárquico: Eu. Depois de alguns anos de reforma, em 1905, o castelo passou a ser morada do casal exilado. A própria princesa, em um dos postais remetidos à viscondessa de Cavalcanti, datado de 18 de outubro daquele ano, e também conservado no arquivo do Museu Mariano Procópio, diria que havia “bastante que fazer” e utiliza a palavra “ruínas”, certamente para se referir ao castelo incendiado ora em reformas.
Os amplos espaços possibilitaram dispor os inúmeros objetos – entre eles retratos, bustos, pinturas históricas e até uma carruagem que serviu no casamento de d. Pedro I – provenientes do Brasil, convertendo, assim, a residência em um lugar de culto à memória do Império decaído. Com a queda do regime, em novembro de 1889, e a imediata imposição pelo governo republicano da saída do país de d. Pedro II, uma série de adeptos da monarquia acompanharam o monarca destronado em demonstração de fidelidade e de declarada oposição à República recém-instaurada. Estes, como os barões de Muritiba, de Loreno, da Penha e de São Joaquim, conformaram uma corte brasileira na França em torno da família imperial no exílio, sendo o castelo um reduto saudosista da monarquia. O periódico francês La Vie Heureuse, de outubro de 1905, assinalaria que “A Condessa d’Eu [princesa Isabel] recebe […] em sua sala as famílias mais nobres da Colônia Brasileira, que ainda a consideram, apesar da Revolução, como sua imperatriz.”
A presença do retrato de d. Pedro II em Uruguaiana na residência de Eu, apesar de impor a celebração da memória do Imperador atrelada à guerra contra o Paraguai, poderia, aos olhos do conde d’Eu, remeter à lembrança dos desentendimentos dele com o sogro, que chegou a recusar, por diversas vezes, o seu envio para os campos paraguaios. Talvez, ao mirá-lo, o conde recordasse, ainda, que os impactos da guerra levaram à própria queda do Império. De todo modo, para a construção de sua memória ligada ao conflito armado, em um dos salões do castelo, o esposo da princesa Isabel fazia questão de exibir a espada que utilizara nas batalhas paraguaias, em um exercício de afirmação de sua posição de “bravura”, enquanto comandante das tropas brasileiras. Vale observar que não só o quadro foi carregado do Brasil e disposto com ostentação entre as paredes da morada do exílio, mas também o próprio poncho que d. Pedro II exibe na pintura de Viénot. A vestimenta seria doada em 1926, por decisão do príncipe do Grão-Pará, filho mais velho da princesa Isabel, ao Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro), no desejo de consagrar a lembrança do feito histórico em um museu público que cultuava, justamente, a memória da monarquia e da própria guerra contra o Paraguai.
A coleção formada no exílio passaria, ao longo dos anos, por outros momentos de dispersão. Dos poucos objetos que ainda restam no castelo d’Eu, atual Musée Louis-Philippe, e que fazem memória à guerra, para além da fotografia de Luigi Terragno, encontra-se também o retrato do General Venâncio Flores, presidente uruguaio que, ao lado do Brasil e da Argentina, colocou-se em oposição ao Paraguai na “guerra da tríplice aliança”. O quadro, assinado por “M. Martinez” e datado de 1868, apresenta o militar fardado, condecorado e com a mão direita apoiada na espada, na pose habitual dos homens fardados em seus retratos do século XIX. A obra pertencia às coleções do próprio d. Pedro II no palácio de São Cristóvão, e foi remetido do Rio de Janeiro para França após o ocaso do Império.

Eu, Normandia, França.
Alguns dos objetos pertencentes à família imperial no exílio retornaram ao Brasil durante o século XX, e chegaram a ser musealizados, como é o caso daqueles preservados no Museu Imperial; outros, permanecem até hoje no castelo d’Eu (Museu Louis-Philippe), em uma espécie de “eterno exílio”. E há ainda os que estão com os descendentes, como é o caso do retrato de D. Pedro II em Uruguaiana, de Édouard Viénot, que voltou ao Brasil possivelmente na década de 1940. Mas, embora esse retrato tenha ficado recluso por tantos anos no memorial montado pela princesa na França, a imagem do Imperador se fez presente, veiculada a partir do cartão-postal que reproduzia a pintura de Viénot. Seja no retrato pendurado no castelo francês, seja no postal guardado pela viscondessa em Juiz de Fora, a memória de d. Pedro II teimava em sobreviver aos tempos republicanos; espécie de “fantasma” em representação que chega até nós em seus 200 anos de nascimento.
Saiba Mais!
BARBOSA, Thalita Moreira. A elite no exílio. A colônia brasileira de Paris (1889 a 1928). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: ICH UFJF, 2019.
CUNHA, Álvaro Saluan da. As litografias da coleção “Quadros históricos da guerra do Paraguay” na década de 1870: projeto editorial e imagens. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: ICH UFJF, 2019.
DIAS, Elaine. Artistas franceses no Rio de Janeiro (1840-1884). Das Exposições Gerais da Academia Imperial de Belas Artes aos ateliês privados. Fontes primárias, bibliográficas e visuais. Guarulhos: EFLCH-UNIFESP, 2020.
FERRAZ, Rosane Carmanini. A coleção de fotografias do Museu Mariano Procópio e as sociabilidades no Brasil oitocentista. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: ICH-UFJF, 2016.
LIMA JUNIOR, Carlos. Marianne à brasileira: imagens republicanas e os dilemas do passado imperial. Tese (Doutorado em Estética e História da Arte). Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. São Paulo: MAC-USP, 2020.
LIMA JUNIOR, Carlos. Evocações do Império na morada do exílio: percalços de uma coleção brasileira no Castelo d’Eu. Anuário do Museu Imperial, vol. 3, 2022.
Imagem (re)velada: sobre uma fotografia desconhecida da “Missa Campal 17 de maio 1888” no acervo do Musée Louis-Philippe, Castelo d’Eu. Revista de História da Arte e da Cultura, Campinas, SP, v. 6, n. 1, p. 55–88, 2025.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II: um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
STUMPF, Lúcia Klück. Fragmentos de guerra: imagens e visualidades da guerra contra o Paraguai (1865-1881). Tese (Doutorado em Antropologia). FFLCH Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
* Carlos Lima Junior é doutor em Estética e História da Arte pelo MAC-USP, com pós-doutorado em História pela Unicamp e estágio de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales (bolsa Fapesp). Investiga a trajetória das coleções artísticas e históricas da família imperial em tempos de exílio. Docente do curso de História da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. E-mail: carlos.lima19@unifesp.br.

