Ana Cabral, Ceo da Mineradora Sigma Lítio - créditos: divulgação
19-11-2025 às 10h10
Soelson B. Araújo*
A fala proferida pela CEO da Sigma Lítio, Ana Cabral, em um podcast durante a COP30, (vídeo abaixo) caiu sobre o Vale do Jequitinhonha como uma ofensa que não pode — e não será — ignorada. Ao se referir a uma suposta “geração perdida do Vale”, a empresária construiu um retrato distorcido, fantasioso e profundamente desrespeitoso de um povo cuja dignidade e força precedem qualquer ciclo econômico ou interesse corporativo.
A imagem inventada por Cabral, segundo a qual crianças do Vale seriam “mulas de água”, revela não apenas desconhecimento, mas a perpetuação de um estereótipo cruel sobre comunidades que há décadas lutam para afirmar sua identidade, preservar seus modos de vida e conquistar direitos historicamente negados. Não existe — e nunca existiu — a tal “geração perdida” evocada como justificativa para um discurso salvacionista que, no fundo, mascara o desprezo por territórios tradicionalmente tratados como zonas de sacrifício.
As reações não tardaram, e vieram com força. A Diocese de Araçuaí publicou uma Nota de Repúdio contundente, lembrando que o povo do Vale não precisa ser “salvo” por empresas, mas respeitado em sua autodeterminação. O prefeito de Itinga, o prefeito de Itaiobim, e tantas outras lideranças políticas locais denunciaram a falácia presente nas palavras da executiva, ressaltando que o Vale sempre produziu cultura, trabalho, saber comunitário e resistência — muito antes da chegada de qualquer mineradora.
O artista Paulinho Pedra Azul, símbolo vivo da poesia e da musicalidade do Vale, manifestou sua indignação ao ver seu povo reduzido a uma ficção colonial. O presidente da Comissão de Comunidades Quilombolas do Vale, Jo Pinto, lembrou em sua Nota que o discurso de Cabral ecoa velhas práticas de apagamento e exotização, contra as quais comunidades quilombolas têm lutado por gerações.
Também os deputados estaduais Dr. Jean Freire e Marcos Lemos, que são do Vale, e o comunicador Roger Silva Oficial engrossaram o coro daqueles que não se curvam ao desrespeito, reforçando que o desenvolvimento só pode ser legítimo quando dialoga com a verdade, com o território e com as pessoas — e não quando se constrói sobre invenções depreciativas.
As falas da CEO acenderam um alerta que vai muito além de um deslize verbal. Elas revelam a lógica com que ainda se tenta justificar, em pleno século XXI, o avanço de megaprojetos minerários em regiões vulnerabilizadas: a narrativa falsa de que a atividade extrativa seria a única tábua de salvação possível. O povo do Vale sabe que isso não é verdade. Sabe porque viveu, sobreviveu e criou identidades muito antes da chegada da mineração industrial — e sabe porque hoje paga um preço social, ambiental e cultural por projetos que muitas vezes prometem muito e entregam pouco, além de deixar um passivo ambiental gigante.
Repudiar as falas de Ana Cabral não é apenas uma reação emocional: é um ato de defesa da memória, da dignidade e do futuro do Vale do Jequitinhonha.
A verdade é simples: o Vale não é perdido. Perdido é o olhar que não enxerga sua beleza, sua vida comunitária, sua ancestralidade e sua potência. Perdido é o discurso que, para se justificar, precisa inventar misérias inexistentes.
O Vale sabe quem é. E não aceitará, calado, que outros digam por ele.
*Soelson B. Araújo é empresário, jornalista, escritor, CEO do Diário de Minas e filho do Jequitinhonha

