Créditos: Divulgação
15-11-2025 às 08h00
Edilma Duarte*
Aos 92 anos, o biólogo Célio Valle avisa, logo de início, com a serenidade de quem cumpriu muitas jornadas:
“Estou aposentado. Hoje, passo a maior parte do tempo aqui na fazenda, com minha mulher.”
Mas basta o gravador ser ligado para que sua voz ganhe brilho. Ele se anima, conta histórias, traça paralelos entre passado e presente, fala de ciência e de fé, de erosão e esperança. É impossível não se contagiar.
Entre risos e lembranças, Célio Valle revela o novo projeto que o move: a preservação das grotas em sua fazenda, em Pompéu, no interior de Minas Gerais.
“Preservando a grota, estamos preservando a natureza, a água e garantindo a produção de comida. As pessoas se preocupam com o que deixar para os filhos. Eu acho que precisamos nos preocupar é em deixar a terra, a água”, ensina o homem que viveu e trabalhou sempre em comunhão com a natureza.
O PROFESSOR E O PIONEIRO
Célio Valle é uma das vozes mais antigas e respeitadas do ambientalismo mineiro. Foi professor universitário por quatro décadas, atuou no Ibama, no Instituto Estadual de Florestas (IEF) e cofundou a Fundação Biodiversitas, instituição que marcou a história da conservação ambiental no país.
Nos anos 1970, quando o tema meio ambiente ainda era visto com desconfiança, ele já alertava sobre os riscos da devastação.
“Éramos um grupo de professores da universidade trabalhando com as pessoas. Juntos criamos o Parque Nacional da Serra do Cipó”.
Ele conta que, em 1975, foi decisivo para convencer Maria Tereza Jorge Pádua, então diretora do Ibama, a apoiar a criação do parque.
“Ela dizia que a área não tinha estrutura para ser parque nacional. Eu sugeri que arranjássemos um avião e sobrevoássemos a Serra do Cipó. Fizemos o voo. Ela voltou para Brasília e o parque saiu. Mas foi um esforço coletivo.”
Naquela época, diz ele, poucos acreditavam na gravidade das mudanças ambientais. “nos chamavam de sonhadores. Só os velhos diziam: ‘se estão cortando as árvores, vai acabar’. Eles tinham razão.”
A SABEDORIA DA TERRA
Com o passar dos anos, Célio viu a ciência confirmar as intuições dos antigos.
“A diversidade é o que dá equilíbrio. Se eu tiro as árvores, tiro os passarinhos. Se tiro as árvores, posso ter problema no futuro. É a diversidade que sustenta a vida.”
Aposentado, decidiu voltar à terra. “Falei: ‘vou para a fazenda’. Minha mulher tinha uma pequena produção de leite. Hoje ela administra tudo. E eu fico nos projetos ligados à terra.”
Ali, nasceu sua mais recente empreitada: a recuperação das grotas e matas ciliares. Ele explica o método com a didática do professor que nunca deixou de ensinar.
“O processo é simples. Você protege sessenta metros a partir da beirada do córrego. Cercar é importante. A mata volta. Não vou vê-la em seu esplendor, só daqui a dez anos, mas não me importo. Meus filhos e netos verão. Está ótimo.”
O entusiasmo dele é contagiante.
“Cuidando da grota, estamos cuidando da água e da agricultura. Estamos garantindo água para quem está rio abaixo. Isso é preservar a vida.”
SEMEAR O FUTURO
Todos os dias, Célio sai cedo para observar o crescimento das plantas.
“Sou eu comigo mesmo. Jogo sementes, protejo as mudinhas. Se quero dez árvores, jogo mil sementes. Na natureza é assim. O vento leva, os passarinhos levam. Eu só imito a natureza.”
Ele fala com ternura da floresta que renasce sob suas mãos.
“Quando caem as folhas, elas adubam a terra. A natureza faz tudo. Basta que a semente caia no lugar certo, na hora certa.”
Lembra, então, de uma frase de Cícero, que o acompanha como um mantra:
“Planto árvores para aqueles que ainda não nasceram.”
E completa:
“Eu não verei essas árvores adultas, mas as vejo crescer ano a ano. E isso me basta.”
O HOMEM E O JARDIM
Para Célio Valle, preservar a terra é também um ato espiritual.
“Deus nos fez do barro, da terra, para viver no jardim. O jardim é a terra. E o erro foi não obedecer às leis da natureza.”
Fala com certa tristeza do mundo moderno, mas sem amargura.
“A gente se preocupa em deixar dinheiro, casa, bens. Mas e a água? E a terra? Não podemos deixar uma terra de vidro. Precisamos deixá-la viva, pelos filhos, netos, bisnetos.”
Crítico da lógica econômica que ignora os limites da natureza, ele reflete:
“A economia humana é cruel e inconsequente porque visa apenas o lucro. Precisamos produzir, claro, mas sem destruir. O ar que eu respiro é o mesmo que o pobre respira. Se eu limito o ar, atrapalho a todos.”
E encerra com a serenidade de quem conhece o ciclo das coisas:
“Nós, da roça, é que garantimos o ar da cidade e a água. Mas dependemos da cidade também. Ela faz as máquinas que nos ajudam a destruir menos a natureza. Tudo está ligado.”
Aos 92 anos, entre mudas, córregos e lembranças, Célio Valle segue fiel à sua missão: plantar o que não verá crescer, mas que saberá florescer.
*Edilma Duarte é jornalista e editora do Portal Baoba

