
Artes da representação - créditos: divulgação
19-10-2025 às 09h40
Marcelo Galuppo[1]
Muito antes de Manuela Dias reescrever Vale Tudo, e mesmo antes de Gilberto Braga tê-la escrito, as regras da dramaturgia já tinham dono. Por volta de 335 a.C., Aristóteles, cansado de ver dramas mal encenados em Atenas, resolveu colocar ordem na bagunça e escreveu a Poética. Muitas de suas regras seriam subvertidas ao longo da história da literatura e do teatro, mas esse não foi o caso de Vale Tudo, que apenas as violou.
Na Poética, Aristóteles tratava da epopeia, da tragédia e da comédia, embora a parte sobre essa última tenha se perdido. Há quem diga que Aristóteles não deu importância à poesia lírica porque a achava piegas: gente suspirando por amores impossíveis e escrevendo versinhos melosos era demais para ele, poesia de colegiais, e não de gente séria (Catulo ainda não havia nascido para desmentí-lo, mas é difícil acreditar que o filósofo aplicasse esse juízo a Safo, a décima musa, segundo o famoso epigrama de Platão).
Deixemos de lado a epopeia, seria uma verdadeira odisseia falar dela, e fiquemos com as artes da representação. A tragédia e a comédia nasceram nos cultos dionisíacos, rituais em que se misturavam vinho, teatro e êxtase, combinação que continua imbatível. Na história grega, não desempenharam apenas a função de entretenimento: eram uma experiência religiosa, mas também a manifestação da consciência política e moral de Atenas.
Os mundos trágico e cômico não se misturavam. Aristóteles assegurava que nenhum autor conseguiu se dedicar a ambos, e Platão, no Banquete, até ensaiou discutir essa possibilidade, mas, como de costume, termina por nada dizer. Na tragédia, rito de origem urbana, atores representavam heróis mitológicos (Orestes, Édipo, Medeia) e usavam calçados altos, os coturnos, para parecerem maiores do que os espectadores. Na comédia, rito de origem rural, os atores representavam gente comum (o próprio Sócrates foi personagem de As Nuvens, de Aristófanes), e usavam sandálias baixas, os socos, para ficarem na altura do público. A tragédia despertava o terror e a piedade na plateia, a comédia, o ridículo e o riso.
Aristóteles chamou de peripécia o momento da virada do destino na trama, quando, por exemplo, Édipo recebe o mensageiro que traz uma notícia boa demais para ser verdade, e de catástrofe o desfecho inevitável, causado pela própria ação dos heróis, como quando Édipo arranca os próprios olhos para punir-se por sua cegueira moral. Para funcionar bem, a peripécia deveria corresponder ao reconhecimento, quando, por exemplo, Édipo descobre que ele era assassino de Laio e filho de Jocasta (para maiores detalhes, leia a peça de Sófocles, que não conhecê-la é falha grave na formação de qualquer ser humano). Tudo isso serviria à catarse, à purificação das emoções da audiência que, ao se identificar com o personagem, recebia misticamente os seus castigos como punição de seus próprios pecados. Mas Aristóteles alertava: para a tragédia ser boa, o herói não deve cair por sua maldade, e sim por um erro de julgamento, geralmente causado por uma ambiguidade, o famoso “entendi errado o oráculo”.
Dito isso, chego a Odete Roitman e Maria de Fátima. Nenhuma das duas inspirou terror ou piedade: seu infortúnio (temporário, descobrimos no último capítulo, um engano que frustra o público) foi causado por seu próprio caráter. Aliás, se tem algo que não faltou à nova versão foi mau-caratismo: além delas e de Marco Aurélio, Celina, Heleninha, o insuportável Afonso, Freitas, são todos dotados de uma dose de chatice misturada a uma pitada de psicopatia que faz com que não tenham despertado em nós nada além de tédio, e nem atores e atrizes tão competentes quanto os que os representaram conseguiram salvá-los.
A protagonista, que no teatro grego era literalmente a primeira personagem a entrar em cena (para deixar claro para a audiência sobre quem seria a peça), virou figurante de luxo, e foi desaparecendo da novela: Raquel perdeu-se na trama, talvez porque a honestidade e o trabalho foram destituídos de qualquer função em nossos dias, quando ser influencer e só fazer bobagens passou a ser fonte de renda mais segura do que investir tempo e dinheiro e correr riscos. Por isso o público parece ter preferido ver quem enganava melhor do que quem dava duro para conseguir um lugar ao sol.
Não é culpa apenas da autora, é também sinal dos tempos. A antiga versão foi escrita em uma época em que havia confiança em um futuro melhor para todos, a nova, em uma em que se perdeu qualquer esperança. Manuela Dias começou com uma obra tão moralizante quanto a de Gilberto Braga, mas tropeçou no paradoxo contemporâneo e não conseguiu administrá-lo: já não temos heróis nem vilões, porque somos todos cínicos. Na Vale Tudo original, ainda se discutia se valia a pena ser honesto num país de desonestos, que dissimulavam para atingir seus objetivos. Agora, nem isso. O hipócrita, aquele que mente e disfarça, morreu; hoje reina o cínico, aquele que ri das convenções e age apenas para realizar seus fins, mesmo que isso custe a saúde física e mental dos outros. No fim, a nova versão de Vale Tudo apenas refletiu um tempo sem possibilidade de redenção, apresentando um espetáculo em que todos os personagens deveriam experimentam sua catástrofe privada, sem despertar, no entanto, nem piedade, nem riso, e no qual ninguém aprende nada, um tempo em que nada parece real.
Mas nada vai ser lembrado por tanto tempo como símbolo do fracasso da teledramaturgia quanto Odete, dando um até breve para o Brasil. Aristóteles, que disse que qualquer coisa de improvável só deveria ocorrer fora da visão dos espectadores, certamente mudaria de canal, para nunca mais ligar na Globo.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, da editora Citadel, dentre outros (conheça o livro aqui). Ele escreve quinzenalmente aos domingos no Diário de Minas.