
Romaria em Bom Jesus da Lapa - créditos: divulgação
12-10-2025 às 14h00
Solange Mendes* – para o DM Literário
Vendo um documentário com Darcy Ribeiro, antropólogo, escritor e político, que conhecia como poucos a vida das pessoas mais simples, me veio a memória coisas minhas, que guardo com carinho, pois creio que se eu soubesse as experiências que teria, brincaria com Deus, pedindo muitas outras vidas, pois essa não daria pra minhas vivencias.
Fui pastorinha nas Folias de Reis, cantávamos de casa em casa, pela madrugada afora. A Folia cantada por nós e nossas vozes finas e altas, sobrepunha a dos cantadores de vozes mais firmes, e quando entrava no terreiro de uma casinha simples cantando: “Ô de casa, Ô de fora, abra a porta e vem ver …Deus Menino em sua porta, ele acaba de nascer..”.
Os donos das casas e suas famílias chegavam felizes, nos convidando para entrar, todas as lamparinas eram acesas, o fogão que já estava quase no borralho, era assoprado e logo começava a fumegar. Um presépio no canto da sala feito com sacos de cimento pintados com carvão, e salpicados de malacacheta, nos lembravam um céu estrelado; o Menino Jesus deitado num pouquinho de capim com Maria e José, nos emocionavam com a singeleza dos enfeites, de tudo que é jeito…
Por uma meia hora, cantavam, rezavam, beijavam a bandeira e depois de comer tudo que tinha pela frente, alguns adultos, despistavam e tomavam umas boas talagadas de cachaça e a folia seguia para a casa mais próxima…
Cada casa era uma novidade. Preparavam uns comes e bebes, pois como não eram avisados, em que casa passaria a Folia, toda casa se preparava da melhor forma e era muito mingau de milho verde, milho cozido, assado, rapadura, caldo de cana, biscoito de sal e doce, jurubeba Leão do Norte, farofa, carne assada, café e doces. Mas mesmo com toda a comilança oferecida, sempre tinha no meio, aqueles que aproveitavam da fé e do bom coração e acabavam enchendo os embornais de frutas, biscoitos e até pedindo galinhas vivas e ovos. Até porco eu já vi ser dado e levado!
É, cantar Reis além de fortalecer a fé, ainda ajudava na feira da semana.
Antes disso, quando pequena, lá em Itaobim, num mês de maio, que é o mês de Maria, coroei Nossa Senhora. Naquele momento, num vestido rosa de cetim e pala de casinha de abelhas e asa de penas de verdade, que eram feitas pelas irmãs, e com a coroa reluzente, me senti um anjo.

Tão anjo era, que um ano depois, minha mãe, tendo que pagar uma promessa em Bom Jesus da Lapa, levou a minha irmã e eu. Chegando lá, antes da festa, que seria no dia seguinte, ela foi à igreja doar nossas vestes. O Padre, encantado e agradecido com a doação, pediu também, que ela deixasse a minha irmã e eu vestir de anjo pra compor o andor que seria o ponto alto da procissão.
O andor que era carregado pelos fiéis, era todo forrado com flores naturais e uma imagem de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa na frente de um grande coração de veludo vermelho, e nas laterais, eu e minha irmã, como anjos protetores, estávamos sentadas na beira, protegendo Nosso Senhor…
Os fiéis em sua humilde fé, esfregavam nossos pés com as mãos, esfregavam lenços, alguns beijavam e a força de cada um, fazia com que o andor pesasse toneladas nas costas daqueles coitados que se inclinavam nos fazendo temer uma queda.
As ladainhas cantadas e as palmas saudando o Santo, nos faziam a cada momento mais e mais apavoradas e o andor mais inclinado pela aproximação da igreja que ficava no alto, só aumentava nosso medo. Até que apareceu uma infeliz com uma tesoura e começou a cortar pedacinhos do meu vestido e dar aos fiéis. Quando olhei para a minha irmã, vi que como eu as lágrimas desciam, pois dividíamos o mesmo medo, que era o de que nos ferissem os pés.
Graças a Deus, Bom Jesus da Lapa era mesmo milagroso, pois com toda a turba a nos cercar e puxar pra lá e pra cá, conseguimos chegar ao altar, inteiras, com Santo e tudo.
Os vestidos estavam com as partes abaixo dos joelhos em tiras e minha Mãe com o coração em paz nos aconchegou nos braços, toda orgulhosa, e continuamos a louvar o santo. No final, depois de toda homilia, o padre em agradecimento nos chamou ao microfone, agradeceu e perguntou se queríamos falar algo. Peguei o microfone e com toda a força dos meus seis anos gritei:
“Viva Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa”!!!

*Solange Mendes nasceu em Teófilo Otoni, e escreve sobre ela e o que vê para não ser esquecido