
Dom Pedro II 200 Anos - créditos: Divulgação
12-10-2025 às 10h25
Lucas Costa de Castro*
Rosane Carmanini Ferraz**
Na exposição “Rememorar o Brasil: a independência e construção do Estado- Nação”, atualmente em cartaz no Museu Mariano Procópio, há um objeto em madeira dourada que chamou nossa atenção como pesquisadores. Trata-se de um emblema da galeota que pertenceu ao rei D. João VI, apresentando as iniciais de D. Pedro II e D. Teresa Cristina. O objeto em questão nos provocou alguns questionamentos: quais as funções desempenhadas por essa embarcação ao longo do tempo? Qual a relação desse objeto com a trajetória de D. Pedro II? E como este item passou a fazer parte da coleção do museu? Tais questões nos moveram na escrita deste breve texto.


A galeota D. João VI representa a continuidade da tradição náutica lusitana de embarcações pomposas e extravagantes destinadas ao transporte de autoridades e outras figuras ilustres. Usadas em solenidades e festas, essas embarcações cumpriam, sobretudo, a função de receber passageiros vindos de naus oceânicas, que devido ao seu porte, não podiam atracar diretamente nas estruturas portuárias da época. Esse costume já fazia parte das cerimônias receptivas portuguesas e ganhou expressão no Brasil com a vinda do então príncipe regente, em um reino que ainda buscava se desvencilhar de sua estrutura colonial.
A concepção da galeota partiu de D. João de Saldanha da Gama Melo, Conde da Ponte e governador da Província da Bahia. Seu objetivo era homenagear o príncipe e, ao mesmo tempo, demonstrar a capacidade construtiva do arsenal da marinha em Salvador, lhe dando um presente para uso particular. A embarcação foi concluída em 1817 e rebocada até o Rio de Janeiro, chegando à corte em 4 de janeiro de 1818, ano da coroação de D. João VI.
Com 24 metros de comprimento e tendo como cores predominantes o dourado, o azul e o verde, a galeota era impulsionada originalmente por 22 remos e 44 remadores, número ampliado posteriormente para 30 remos e 60 remadores, compostos por uma tripulação de homens livres. Construída em madeira, possuía casco robusto, popa formada por um camarote decorado e forrado em veludo, e proa adornada por uma carranca em forma de dragão, símbolo da Casa de Bragança.
Atendendo aos deslocamentos da família imperial na Baía de Guanabara, foi amplamente utilizada em diferentes momentos históricos. Em 1821, serviu ao retorno de D. João VI e da família real a Portugal, em virtude das pressões políticas das Cortes Portuguesas. Após a Independência, transportou duas das três imperatrizes do Brasil: D. Amélia de Leuchtenberg e Maria da Glória, respectivamente, segunda esposa e filha de D. Pedro I, e D. Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II. Em 1889, transportou o Conde d’Eu e sua comitiva até a Ilha Fiscal por ocasião da inauguração do famoso palacete neogótico.
A embarcação também foi empregada em cerimônias fúnebres, como no traslado do corpo de José Bonifácio, patriarca da Independência e tutor de D. Pedro II, de Niterói ao Rio de Janeiro. Com o advento da República, continuou a ser utilizada em ocasiões oficiais. Em 1899, transportou o presidente argentino General Julio Roca e, em 1910, Roque Sáenz Peña e sua comitiva. Serviu ainda aos presidentes marechal Hermes da Fonseca e Nilo Peçanha e também ao rei Alberto da Bélgica e sua esposa, a rainha Elizabeth, em visita oficial ao Brasil.
Ao longo de sua trajetória, passou por alguns processos de restauração. Após ser desativada, permaneceu no Arsenal da Marinha até integrar o acervo do Centro Cultural da Marinha Brasileira, inaugurado em 1996 na Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro. Tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (INEPAC) em 31 de março de 1978, é a mais antiga embarcação preservada no Brasil e a única de seu tipo na América do Sul, ligando o passado colonial, imperial e republicano. As comemorações do bicentenário da chegada da família imperial ao Brasil, em 2008, estimularam e ensejaram a restauração da Galeota de D. João VI. Em 2023, foi transportada para a área externa da Ilha Fiscal, ao lado do palacete em estilo gótico provençal, onde se encontra atualmente.


Entre seus ornamentos da galeota D. João VI, destaca-se o emblema alusivo ao casamento de D. Pedro II com D.Teresa Cristina, atualmente parte do acervo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG). O objeto integra a coleção original de Alfredo Ferreira Lage, registrada no arrolamento de 1944 – documento elaborado pela Prefeitura de Juiz de Fora, após o falecimento do colecionador, com o intuito de listar os bens por ele doados. Pesquisas na instituição, entretanto, ainda não esclareceram a forma como a peça foi adquirida. Além do emblema, outros itens que compunham a embarcação fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional, como um farol dourado, estandarte, ornamentos em bronze e bandeiras, o que demonstra que alguns itens da embarcação foram direcionados para instituições de memória que preservam parte da memória nacional.

O emblema, segundo descrições da própria galeota, integrava a rica ornamentação da popa. Além dos talhamentos em padrões florais e arabescos, há vestígios de um escudo em estilo barroco, posicionado acima do brasão de armas do império brasileiro, onde antes da independência figurava o brasão de Portugal. Tal descrição pode indicar que a peça foi empregada em caráter especial durante as festividades do casamento de D. Pedro II, e depois removida em alguma das reformas à qual a embarcação foi submetida, ou, para mais uma das ocasiões de seu histórico. Outros elementos decorativos como armas de dragões da dinastia de Bragança foram retirados após a proclamação da República.
Por ocasião do casamento, divisões navais brasileiras e napolitanas conduziram a imperatriz Tereza Cristina na travessia do Atlântico, através da fragata Constituição. A embarcação ancorou em águas brasileiras em 3 de setembro de 1843. O casamento havia ocorrido em Nápoles, por procuração, no dia 30 de maio do mesmo ano. D. Pedro II utilizaria a galeota D. João VI para ir ao encontro da agora imperatriz brasileira. No dia seguinte, a imperatriz, o imperador e a princesa Januária, sua irmã, desembarcaram no cais do Valongo. O desembarque ocorreu, de maneira festiva, ao som do hino nacional, de tiros de canhão e dos foguetes, e dos sinos das igrejas.
O contrato matrimonial que trouxe a nova imperatriz ao Brasil foi fruto de intensas e longas negociações. Vale destacar que o casamento de reis e imperadores eram negócios de Estado. Para tanto, Bento da Silva Lisboa, ministro das relações exteriores, foi enviado à Europa com a missão de negociar o matrimônio com uma princesa de grandes casas dinásticas como os Bourbon ou os Habsburgos. Tarefa nada fácil uma vez que o Brasil era considerado um império exótico, distante e sem grande protagonismo no cenário político. Após algumas negociações frustradas, Vincenzo Ramírez, Ministro do Rei Fernando II, acabou firmando o acordo de casamento entre o Imperador D. Pedro II e a irmã mais nova do rei, Tereza Cristina.
A imperatriz era filha do Rei Francisco I e princesa das Duas Sicílias. Seu irmão Leopoldo, o conde D’Aquila, casou-se com a irmã de Pedro II, Dona Januária. O casamento se deu por procuração, após autorização do Papa Leão VIII pelo fato de D. Pedro II e Tereza Cristina serem primos.
O acordo matrimonial tinha como principal objetivo a garantia da sucessão ao trono. Apesar da frustração inicial com a aparência da imperatriz, o casamento deu segurança ao jovem imperador de apenas 18 anos, garantindo que cumprisse seu dever como monarca. Os imperadores tiveram 4 filhos: Dom Afonso e Dom Pedro Afonso, que faleceram ainda crianças, Dona Isabel e Dona Leopoldina, que também faleceu aos 24 anos. Apesar da morte dos herdeiros masculinos, em tese, a sucessão estava garantida, pela continuidade da tradição portuguesa de mulheres poderem ascender ao trono.
O fato do emblema comemorativo da Galeota D. João VI, utilizada na ocasião do casamento dos imperadores fazer parte da coleção de Alfredo Ferreira Lage, demonstra uma característica fundamental do seu colecionismo. Está diretamente relacionado ao projeto de memória por ele concebido, de enaltecimento da memória de Mariano Procópio, seu pai, e dos valores monárquicos. Seu esforço como colecionador, em adquirir ou receber objetos relacionados a essa temática, fez do Museu Mariano Procópio o maior museu de Minas Gerais e o segundo maior do país em número de itens relativos ao período imperial brasileiro.
Saiba Mais!
CARVALHO, José Murilo de. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MARINHA DO BRASIL. Galeota Dom João VI. Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/dphdm/galeota-dom-joao-vi. Acesso em: 2 out. 2025.
VIANNA, Marfa Barboza. A Galeota Imperial. In: Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,1940 a 2016, ano 1945, edição 00006 (25). p. 305-311.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
* Lucas Castro é bacharelando do curso de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente, é estagiário do Museu Mariano Procópio na Supervisão de Gestão de Acervos Bibliográfico, Fotográfico e Documental, com experiência no processamento técnico de periódicos.
** Rosane Carmanini Ferraz é professora de história e historiadora, especialista e mestre em Ciência da Religião, doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente, é graduanda em Museologia e supervisora na Supervisão de Gestão de Acervos Bibliográfico, Fotográfico e Documental, no Departamento de Acervo Técnico da Fundação Museu Mariano Procópio.