
Dom Pedro II 200 Anos - créditos: Divulgação
05-10-2025 às 10h23
Priscila da Costa Pinheiro Boscato*
Dentre as obras legadas por Alfredo Ferreira Lage, fundador do Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG), à biblioteca da instituição, inaugurada em 1939, encontra-se um exemplar do “Álbum das Glórias”. Produzida pelo caricaturista português Rafael Bordalo Pinheiro, em parceria com escritores portugueses, tais como Guilherme de Azevedo e Ramalho Ortigão, a obra totaliza 39 números, publicados em duas séries: a primeira, entre os anos de 1880 e 1883; a segunda, no ano de 1902. Cada edição é composta por uma caricatura e um texto que, juntos, exprimem uma visão sobre um indivíduo ou uma instituição.
O “Álbum das Glórias” apresenta, majoritariamente, personalidades e instituições de Portugal, e possibilita uma análise crítica da sociedade portuguesa do século XIX. Entretanto, a publicação inclui alguns personagens brasileiros: Joaquim Saldanha Marinho, Lopes Trovão, Luiz Guimarães e D. Pedro II, que figurou na edição de número 5, publicada em maio de 1880.

Na caricatura produzida por Bordalo Pinheiro, o segundo imperador do Brasil traja sobrecasaca, calça e sapatos. Com a mão esquerda, que está atrás do corpo, ele segura uma mala, da qual cai o manto imperial. Sobre a cadeira que está em cena, observa-se sua coroa e seu cetro. Para Rômulo Brito (2017), a presença desses elementos, diretamente relacionados aos rituais da monarquia, contrasta com a vestimenta do imperador, que embora avesso às “pompas do poder”, era detentor de privilégios provenientes de sua posição. Através dessa representação, Bordalo tece uma crítica à construção da imagem de D. Pedro II como um “monarca cidadão”, problematizando a relação existente entre os termos “monarca” e “cidadão”. Além disso, o caricaturista sugere um certo desinteresse do imperador – pronto para mais uma viagem, talvez – pelo seu “ofício” e pelas questões de Estado.
Bordalo Pinheiro também trata da faceta de D. Pedro II como um “monarca ilustrado”, afeito às artes, às ciências e às letras. Nesse sentido, a postura do imperador brasileiro – que está com a mão direita sob o queixo e o olhar direcionado para cima –, bem como a expressão “já sei, já sei”, inserida abaixo do desenho com o objetivo de definir o caricaturado, chamam a atenção do espectador. Por meio dessa composição, Rafael Bordalo representa D. Pedro II como um chefe de Estado mais interessado nas diversas áreas do conhecimento do que em temas políticos e sociais importantes para a sociedade brasileira.
O texto satírico que acompanha a caricatura foi assinado por “João Rialto”, pseudônimo do escritor português Guilherme de Azevedo. Intitulado “Sua Majestade O Imperador do Brasil”, o texto inicia-se com a seguinte afirmação: “É hoje o único imperador americano, gozando da suprema vantagem de ser, ao mesmo tempo, no resto do mundo, um imperador único” (grifo original). Assim como na composição de Bordalo Pinheiro, Azevedo versa criticamente sobre aspectos relacionados aos termos “monarca”, “cidadão”, “democrático” e “ilustrado”, apontando dualidades e sugerindo certa indiferença de D. Pedro II por temáticas realmente relevantes para o país.
O autor se refere ao imperador brasileiro como o “sr. D. Pedro de Alcântara, conforme ele se chama quando viaja na Europa de chapéu baixo” e destaca que “todos os leitores conhecem de sobra a vida e obras do augusto personagem […] para dispensarem a futilidade de ouvirem contar outra vez como ele veio ao mundo, como engatinhou pelos degraus do trono, e como, por direito hereditário, ocupou o lugar que, nas horas vagas, está sentado no sólio [trono] brasileiro”. “João Rialto” caracteriza-o, ainda, como um príncipe ilustrado, que “toma logo pela manhã, ao levantar da cama, uma gemada feita com o último ovo posto pela ciência, de maneira que sabe primeiro do que ninguém o princípio e o fim de todas as coisas […]”. Ademais, destaca que “visto por fora é um reflexo exato da constituição”, mas que “visto por dentro, os médicos que o têm observado dizem que Sua Majestade tem a exata conformação de um autocrata”.
A presença de D. Pedro II e de outros brasileiros no “Álbum das Glórias” sugere que na visão dos intelectuais que contribuíram com a produção da obra, a análise do perfil desses indivíduos era relevante para a reflexão de temas que, nas décadas finais do século XIX, estavam em pauta no Brasil e em Portugal. Ao satirizarem o monarca brasileiro, tio do rei português D. Luís I, Bordalo Pinheiro e Guilherme de Azevedo teciam uma crítica às estruturas políticas e sociais não apenas brasileiras, mas também portuguesas.
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) veio para o Brasil em 1875. Quatro anos depois, após sofrer dois atentados – provavelmente, em virtude do caráter do seu trabalho –, retornou a Portugal. Em terra brasileira, o caricaturista português atuou como colaborador nos periódicos “O Mosquito”, “Psit!” e “O Besouro”. Através deles, satirizou a situação política e social do império brasileiro e apontou as “mazelas” da monarquia, compreendida pelo artista como um regime oposto aos valores da democracia e à liberdade. D. Pedro II foi significativamente retratado pelo caricaturista, que já em 1872, havia publicado o álbum “Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb pela Europa”, referente à primeira viagem do monarca brasileiro pelo continente europeu.
Por sua vez, no momento em que a edição relativa a Pedro II no “Álbum das Glórias” foi publicada, Guilherme de Azevedo (1839-1882) atuava como correspondente do jornal carioca “Gazeta de Notícias”, em Paris. Vale salientar que em 1880, ano em que o “Álbum das Glórias” foi lançado, Bordalo Pinheiro e Guilherme de Azevedo já haviam trabalhado juntos em “A Lanterna Mágica” (1875) e fundado “O Antônio Maria”(1879-1899), ambos periódicos portugueses.
Ao longo de sua trajetória, o fundador do Museu Mariano Procópio selecionou e adquiriu, através de compras em leilões e do recebimento de doações, um número significativo de objetos relativos ao império brasileiro. Oriundo de uma família da elite oitocentista próxima a D. Pedro II, atuou como um “guardião” das memórias da monarquia brasileira durante as primeiras décadas do regime republicano, incluindo as memórias de sua própria família nas narrativas nacionais veiculadas pelo museu.
A criação da instituição, datada de 1921, coloca em evidência o projeto de perpetuação das memórias monárquica e familiar de Alfredo Ferreira Lage. Logo, a presença do “Álbum das Glórias” dentre as obras que deram origem à biblioteca do museu – provenientes da coleção da família Ferreira Lage – é interessante, uma vez que a caricatura e o texto aqui analisados dessacralizam a imagem do segundo imperador brasileiro. Ao exagerar e ressaltar certas características e traços de personalidade do retratado, o caricaturista transforma D. Pedro II, figura pública e de poder, em objeto de riso, crítica e reflexão.
De certa forma, a obra funciona como um contraponto à narrativa encontrada em outros objetos colecionados por Alfredo, os quais reforçam a representação do imperador do Brasil como um monarca cidadão e ilustrado. Esse fato se torna ainda mais curioso quando constatamos uma caricatura produzida por Rafael Bordalo Pinheiro em um álbum de autógrafos pertencente a Alfredo Lage.
O desenho é datado de 21 de agosto de 1899, ano em que o português, que havia iniciado sua atuação como ceramista em 1884, retorna ao Brasil para expor algumas de suas cerâmicas – dentre elas, a famosa Jarra Beethoven, que atualmente se encontra no Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro). No autógrafo, Bordalo Pinheiro, que se autorretrata ao lado dos músicos portugueses Arthur Napoleão e Viana da Motta, registra: “Ao Exmo. Sr. Alfredo Ferreira Lage e aos grandes artistas Arthur Napoleão e V. Motta o seu maior admirador e velho amigo Rafael Bordalo Pinheiro”.

Saiba mais!
BRITO, Rômulo de Jesus Farias. Um traço sobre o Atlântico: o Brasil na obra caricatural de Rafael Bordalo Pinheiro (1870-1905). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017. (Tese de Doutorado).
MUSEU BORDALO PINHEIRO. Disponível em: <https://museubordalopinheiro.pt/rafael-bordalo-pinheiro/>. Acesso em: ago. 2025.
PINTO, Manoel de Sousa. Rafael Bordalo Pinheiro – O caricaturista. Lisboa: Livraria Ferreira, 1915.
* Priscila da Costa Pinheiro Boscato é graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Cultura e História dos Povos Indígenas pela mesma universidade. É professora de História da Secretaria de Educação de Juiz de Fora e atua como historiadora na Fundação Museu Mariano Procópio, dedicando-se ao processamento técnico dos acervos bibliográfico e documental, bem como à preservação, pesquisa histórica e difusão cultural do acervo da instituição.