
Créditos: Divulgação
18-09-2025 às 09h43
Marcos de Noronha*
Dando sequência à série de publicações que pretendo fazer nesta jornada rumo ao Japão, para participar neste mês da 7ª Conferência Mundial de Psiquiatria Cultural, em Tóquio, vamos ao segundo tópico, em que me preparo para conduzir um workshop sobre polarização patológica. Serão 90 minutos de atividades lúdicas interativas, voltadas a profissionais de saúde mental, com o objetivo de fazê-los vivenciar situações que promovam conhecimento.
Quando os “Conservadores do Brasil”, por meio de Américo Scuglia, quiseram explicar como se cria uma “narrativa”, usaram trechos do discurso do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, captados pelas câmeras em diversos momentos. Iniciam a postagem em seu Reels no Instagram com o título “Nós mostramos como criar uma narrativa”. Scuglia, depois de separar dois objetivos distintos — falar a verdade e enganar o povo —, começa diferenciando: “eles contam uma narrativa e nós mostramos os fatos”. A seguir, apresenta falas de Lula que, segundo ele, esclarecem melhor o conceito e os bastidores das narrativas:
“Bolsonaro não tem nenhuma chance de voltar à presidência da República. Agora vai depender da nossa capacidade de construir a narrativa correta do que ele representou para o Brasil… Porque, quando se quer dar um golpe, constrói-se uma narrativa. Primeiro, para implantar na mente das pessoas a ideia de que a mentira é verdade; e, com a mentira se tornando verdade, então você pode aplicar o golpe que quiser. Aqui no Brasil, nós enfrentamos o discurso dos costumes, o discurso da família, o discurso do patriotismo — ou seja, enfrentamos o discurso de tudo aquilo que aprendemos historicamente a combater… Se eu quiser vencer uma batalha, preciso construir uma narrativa para destruir meu potencial inimigo.”
De forma ainda preliminar, eu poderia dividir narrativas entre aquelas emergentes e as estruturais. Relacionaria as primeiras a ações voltadas, por exemplo, à manutenção do poder em disputas eleitorais e à necessidade de convencer a sociedade. Já as narrativas estruturais são repetições de discursos em situações consolidadas, como quando psiquiatras falam da doença mental considerando apenas o viés biológico. Quanto aos propagadores dessas narrativas, podemos diferenciar os ingênuos, que aparentemente não têm intenção destrutiva, daqueles que as usam com o objetivo de destruir seu potencial inimigo, como pregou o presidente do Brasil. As divisões na psiquiatria deveriam ser uma estratégia didática para realçar aspectos importantes da dimensão humana relacionada à doença mental. Porém, muitas vezes a divisão é reducionista, não contribui para o entendimento e prejudica a atuação dos médicos. A psiquiatria biológica, por exemplo, ao acreditar que a doença mental decorre exclusivamente de um distúrbio químico e que basta a prescrição de um psicofármaco para saná-la, exemplifica um discurso que sustenta a polarização no ambiente em que atuo como psiquiatra. Podemos atribuir a tal aberração interesses das indústrias farmacêuticas, cujo interesse pelo lucro se sobrepõe ao interesse pelo conhecimento, ou à acomodação de alguns profissionais na carreira. Particularmente, acredito na ética de algumas indústrias e de seus representantes e compreendo que buscam sucesso no disputado mercado financeiro, cabendo aos profissionais disporem de recursos para discernir esses propósitos e manter suas responsabilidades.
No Japão, conduzirei o workshop junto com o notável professor do Canadá Vincenzo Di Nicola, que me concedeu a honra de prefaciar meu próximo livro Polarização – Sintoma de Doença Social. Diante de participantes internacionais, nosso objetivo será oferecer ferramentas aos profissionais e educadores para lidar com este fenômeno mundial, do qual ninguém ficará imune. Mantenho postura otimista para despertar o que há de melhor no ser humano, pois a virtude é entender que todos somos irmãos e que o amor deve sobrepor o ódio. Sabemos que a polarização, onde quer que ocorra, desperta o que há de pior em cada um. O Japão é um país cujo povo é bastante receptivo e conta com importantes tradições. O comitê científico responsável pelas aprovações das conferências expressou recentemente preocupação com a polarização mundial e os conflitos atuais no planeta, reconhecendo a importância dessas discussões em nosso meio.
De fato, a polarização é um fenômeno global, intensificado pelas ferramentas de comunicação à distância, que muitas vezes afeta negativamente a convivência humana. Embora não seja exclusivo dos tempos modernos, atualmente esse tema se destaca como problema de saúde pública. Para profissionais de saúde e educadores, lidar com a polarização exige preparo, conhecimento sobre fatores culturais e emocionais e técnicas eficazes para trabalhar com indivíduos e grupos. Elaborei um roteiro com recursos psicológicos para decifrar intenções, em que, ao invés de se ater ao conteúdo do discurso, se considere o “como” a pessoa fala: seus gestos e suas expressões podem dizer muito mais. Para tanto, foram pioneiras as contribuições de Wilhelm Reich quando era aluno de Freud. Em razão dos exageros dos últimos tempos, usei os meios de comunicação no Brasil como exemplo de tentativa de manipulação. Os mesmos periódicos propagam as mesmas notícias: num momento referem-se ao então presidente Bolsonaro e, em outro, ao Lula. Vejam a manchete:
“Príncipe saudita acusado de assassinato será recebido por Bolsonaro em março”.
Agora, em situação igual, o mesmo periódico anuncia:
“Lula convida príncipe saudita que presenteou Bolsonaro com joias de R$ 16,5 milhões para visita ao Brasil”.
Com diversos exemplos semelhantes desde 2019, quando Bolsonaro era presidente, vimos sistematicamente as mídias tradicionais orquestradas num processo de convencimento social. Foi graças, ainda, à certa liberdade da web, apesar da censura instaurada, que a sociedade brasileira pôde comparar os acontecimentos das narrativas.
Para este workshop, recorreremos à catarse e às técnicas psicodramáticas para promover o aprendizado sobre os efeitos da polarização, com foco no papel das emoções. Essa abordagem remonta aos primórdios das sociedades humanas, evidenciada em estudos antropológicos sobre rituais que facilitam a integração e a compreensão mútua. O psicodrama, por exemplo, sistematiza o uso da catarse para revelar padrões de comportamento e fomentar o entendimento. Daremos, como relatei, exemplos brasileiros de manipulação pelos meios de comunicação em momentos inflacionados pela política, mas o exercício será contextualizado segundo os participantes. Seria interessante também usar como exemplo um fato ocorrido em 1880 no Oeste americano, época em que a comunicação era bem limitada, comparada com a atual. Mesmo assim, diante de rixas e tiroteios que perturbavam o progresso e a ordem do local, a população se dividiu: por um lado, alguns defendiam Wyatt Earp, o delegado; por outro, defendiam a gangue dos cowboys.
A polarização muitas vezes leva ao que chamamos de “imunização cognitiva”, tentativa de se proteger dos argumentos alheios ao evitar contato com pontos de vista diferentes. No entanto, superar essa barreira é possível ao desenvolver compreensão profunda da “fisiologia do preconceito”, o que possibilita escuta ativa e diálogo construtivo. Rituais, inclusive religiosos, têm desempenhado esse papel nas sociedades, ajudando-nos a lidar com diferenças que podem gerar conflitos e transformando emoções disruptivas em sabedoria e habilidades de convivência. Em quais situações nos sentimos acomodados a ponto de nossas emoções interferirem significativamente em nossas ações? E quais dessas emoções destacaríamos? Por se tratar de evento internacional, caberá questionar qual tema motiva polarização patológica em cada país, contado pelos próprios participantes da conferência.
Os temas que geram polarização variam conforme a época histórica e o local, podendo ser religião, ideologias, conflitos globais, pandemias e disputas de poder, entre outros. Contudo, as bases do preconceito e da separação entre as pessoas permanecem consistentes. Não há solução única para esses desafios em um mundo tão diverso, mas, para lidar com a polarização, é fundamental que os profissionais de saúde compreendam as raízes desse fenômeno e desenvolvam recursos emocionais e racionais para agir com equilíbrio e empatia. Os participantes do workshop poderão perceber a importância de conhecer a fisiologia de nossas emoções para entender os bastidores desse fenômeno da polarização e atuar de forma mais qualificada em saúde mental.
Durante o workshop, utilizarei técnicas do psicodrama, começando pelo sociodrama, com o objetivo de introduzir conceitos básicos sobre emoção e suas representações. Por meio da participação ativa dos presentes, exploraremos juntos formas de escuta e abordagem que ajudam a construir pontes em vez de barreiras.
*Marcos de Noronha é Psiquiatra Titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina
– Psicoterapeuta e Psicodramatista reconhecido pela Federação Brasileira de Psicodrama
- Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural
- Membro da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural
- Associado da Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria
- Membro do Grupo Latino Americano de Estudos Transculturais (GLADET)
Com formação em diversas técnicas psicoterapêuticas, dedicou-se ao estudo de disciplinas que fazem fronteira com a psiquiatria, como sociologia e etnologia. É um dos fundadores da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural e da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural, tendo publicado artigos pioneiros nos principais periódicos científicos nacionais e livros sobre o tema.
Entre suas obras, destacam-se:
- Terapia Social – um relato intimista de sua trajetória e técnica;
- O Cérebro e as Emoções – uma abordagem contemporânea sobre o tema, com analogias entre práticas ritualísticas e os bastidores das psicoterapias;
- Polarização – Sintoma de uma Doença Social (no prelo).
Atua em Florianópolis coordenando grupos de Terapia Social tanto no setor público quanto no privado, defendendo o trabalho em grupo como uma alternativa eficaz para uma sociedade com grande demanda de cuidados em saúde mental. Também é apresentador do programa Psiquiatria Sem Fronteiras e de lives produzidas pelo Humanitas TV no YouTube.
Formação e Trajetória Profissional
Ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Londrina em 1977, onde percebeu as limitações do ensino médico tradicional. Para complementar sua formação, dedicou-se ao estudo de História e Filosofia Médica, Medicina Oriental e Homeopatia. Seu primeiro contato prático com a psiquiatria ocorreu já no primeiro ano de graduação, em estágios supervisionados em um hospital com técnicas modernas de psicoterapia de grupo na linha do psicodrama.
Aprofundou seus estudos em psiquiatria cultural após a graduação, inicialmente buscando uma bolsa para estudar Orgonomia com Wilhelm Reich na Europa. No entanto, sua trajetória mudou ao conhecer o Serviço de Etnopsiquiatria da Universidade de Nice, na França, onde se especializou na abordagem desenvolvida por Henri Collomb, um dos pioneiros da etnopsiquiatria clínica.
Durante sua estadia na França, trabalhou com imigrantes e aprendeu a integrar diferentes saberes no tratamento de transtornos mentais, priorizando abordagens humanizadas e reduzindo a dependência de psicotrópicos. Essa experiência consolidou sua visão sobre a importância da diversidade cultural no tratamento psiquiátrico.
Ao retornar ao Brasil, empenhou-se na difusão da etnopsiquiatria, publicando artigos em revistas como a Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria e o Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Também apresentou trabalhos em congressos nacionais e internacionais, conectando-se com outros pesquisadores interessados no tema.
Em 1993, durante o 9º Congresso Mundial de Psiquiatria, no Rio de Janeiro, fundou a Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural. Em 1998, foi eleito o primeiro presidente da entidade no I Congresso Brasileiro de Etnopsiquiatria e Simpósio Internacional de Psiquiatria Cultural, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina.
Desenvolvimento da Terapia Social
Com base em suas experiências e inspiração nas sociedades tradicionais, desenvolveu a Terapia Social, uma abordagem que enfatiza a reintegração do indivíduo ao grupo e à sua tradição cultural. Diferente de abordagens convencionais, a Terapia Social propõe um envolvimento ativo e constante do paciente em seu processo terapêutico, tanto dentro quanto fora do consultório.
Em 2007, lançou o livro Terapia Social, formalizando sua metodologia. A obra foi posteriormente traduzida para o espanhol e publicada em 2012.
Atualmente, além de suas atividades clínicas e acadêmicas, é membro do Conselho da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural e segue promovendo pesquisas e eventos sobre psiquiatria cultural e terapias integrativas.