“Seu Zé, tirei 86 quilos de ouro. Pode aceitar esta sacolinha que para mim não vai fazer diferença”
Disse-me que eu fora o único que mostrara ter na cabeça um pouco de coração. “Notei que, ao ser chamado, para na hora, e ouve, não interessa quem esteja chamando”. Tirou do bolso e entregou-me meio quilo de ouro.
07-07-2023 – 08h:00
José Altino Machado*
Dourada gratidão.
“Amo minha mulher com loucura, mas pelo telefone, recado e carta no correio.”
Estava no aeroporto de Marabá, no Pará, quando vi se aproximar um homem não muito mais velho que eu, visivelmente mais decadente. Faltavam-lhe alguns dentes. A barba e cabelos eram brancos, e o aspecto, sofrido. Chegara com seus dois filhos havia três dias, conforme explicou.
Havendo muita gente, grande movimento no local onde todos embarcavam para Serra Pelada, falharam todas as tentativas de sucesso em seu intento, o que acabou fazendo-o vir até a mim.
Afirmava ser garimpeiro há muitos anos, e chegara do interior. Não tinha dinheiro para pagar, e sabia que gasolina de avião custava caro. Ele precisava ir para esse garimpo de Serra Pelada e dar um jeito na vida.
O único meio era contar com a minha compreensão e crédito. Nem sei o que aconteceu, acreditei no velho, deu saudade da franqueza do meu. Pedi-lhe para esperar. No fim do dia, levaria uma pequena carga para um pessoal. Aquilo deixaria disponível um espaço no avião. Eu os levaria. Ao entardecer, juntei tudo e todos e fizemos o voo.
Em Serra Pelada, o homem despediu-se na porta do avião. Agradeceu muito, com a promessa de voltar um dia para pagar. Seriam cerca de catorze gramas de ouro. O velho perdeu-se na multidão de Serra Pelada e não mais o vi por longo período.
Sessenta dias depois, estava sentado no aeroporto de Marabá no mesmo lugar, em cima do balcão. Vi se aproximar um homem bem-vestido, rosto bem escanhoado, e um rapaz também vestido com apuro, limpíssimo, carregando um rádio enorme, com dois imensos alto-falantes na frente, moda naquela época.
Olhei, disse para mim mesmo que o sujeito queria aparecer com aquele aparelho exagerado. Cuidadoso, comentei estar ele a fim de estourar os ouvidos com aquele rádio. Ele, com um sorriso, perguntou se eu tinha gostado. Eu ia lhe dizer que não. O rádio era apelativo e tal. Então acendeu uma luzinha, decidi agradar o rapaz. Disse-lhe ter gostado do monstrengo. O velho olhou-me nos olhos e afirmou havê-lo trazido para mim. Surpreso, lhe agradeci e quis saber o motivo.
Ele sorridente afirmou que eu não estava me lembrando dele por causa de sua aparência haver mudado muito. Eu o havia levado, juntamente aos filhos para Serra. Viera pagar as passagens e trouxera o rádio de presente. Disse-me que, no meio daquela gente ambiciosa, eu fora o único que mostrara ter na cabeça um pouco de coração.
Completou: “o senhor, embora não pareça, é sensível. Notei que, ao ser chamado, para na hora, e ouve, não interessa quem esteja chamando”. Afirmou achar isso uma qualidade admirável em um homem. Depois desses elogios, o elegante senhor tirou do bolso uma sacolinha e entregou-me.
Pesava meio quilo, calculei na hora e observei serem quinhentos gramas de ouro. Ele me devia pagar apenas o combinado. A resposta veio com um grande sorriso:
“Seu Zé, tirei oitenta e seis quilos de ouro. Pode aceitar que para mim não vai fazer diferença, e eu vi que o senhor está precisando fazer a reforma do motor do avião. O senhor estava dizendo a alguém que vai para o Sul, e eu não vi aquele seu avião aí. Isso é para ajudar fazer o que for preciso. Então, não banque o herói, não, eu estou sabendo que a coisa tá preta, o negócio não está nada bom”.
Aceitei muito agradecido com um obrigado verdadeiro. Antes de se despedir emocionado, olhos úmidos, o homem ainda comentou: “Agora estou indo para casa. Vou abandonar esta vida. Minha mulher sofreu demais com minha ausência. Vou sumir daqui e cuidar da minha família, descansar, “seu” Zé. Deus foi bom comigo, eu ainda tenho um resto de vida saudável pela frente para aproveitar esta pequena fortuna que ganhei. Muitas felicidades, para o senhor, que fica. Decidi comprar uma fazendinha e viver com meus filhos no Maranhão, próximo a Grajaú”.
Cerca de quatro meses depois, eu estava no aeroporto, deitado em baixo do avião, onde fica o trem de pouso, ouvi uma voz que me soou conhecida: “Seu Zé, estou querendo entrar com o senhor. Vai voar para lá que hora?” Virei-me e reconheci o velho Geraldo de novo. Ele entraria para Serra comigo. Iria fazer compras, e queria saber quando eu voaria. Desta vez levaria um burro lá para dentro, e queria combinar o frete. Tinha três voos comprometidos. Eu os faria, enquanto ele compraria o que precisasse. Seria um prazer atendê-lo. O homem voltou. Carregamos o burro entorpecido e bem amarrado. Embarcamos as tralhas.
Eu louco para saber o que ele fazia ali. O Senhor Geraldo saíra com mais de oitenta quilos de ouro. Achava meio difícil repetir a façanha. Dissera-me que iria descansar, ficar com sua esposa que deixara abandonada tanto tempo. Ele, como a adivinhar meus pensamentos, explicou-me que não conseguira conviver bem quarenta dias com a família. Amava a mulher com loucura, mas pelo telefone, recado e carta no correio.
“Hoje, na cama, o carinho é estranho, o sexo é ruim, trem de mulher velha. Fiquei em casa e não aguentei”, explicou. “Aquilo, não é vida para mim. Nas ruas, vi automóveis que nunca tinha visto, e diz que tem mais de dez anos que o Brasil estava fabricando, e eu nem sabia. Minhas filhas se engalfinharam por causa de dinheiro. Casaram com uns picaretas do Grajaú. Propus comprar uma fazenda, eles já brigaram para ver como é que ia dividi-la. O senhor quer saber de uma coisa? Dei tudo a eles. Não tenho nenhum amigo na minha cidade, estão todos aqui. Não gosto de ninguém lá fora, minha vida é aqui, o povo que conheço e confio está aqui. Não adianta ficar lá, o que é que eu vou fazer lá? Aquela família não é minha, não, “seu” Zé, é de Deus ou do demônio, sei lá! Vou escrever para eles, mesmo assim. Se eu me afastar é melhor para mim e, com certeza, para eles”.
Geraldo deixara todo o dinheiro para a família. Voltara apenas com uma quinta para pagar a carga, e o suficiente para três meses, até “fazer um dinheirinho novo para continuar vivendo”.
Ele nunca mais abandonou o garimpo. A grande mulher que tinha, haveria sempre de estar longe, porque era assim que ele gostava dela. Juntos, era uma merda, como afirmava. Nem reconheceu a mulher que reencontrou. Em trinta e seis anos de casado, não conviveu mais que dois, mesmo assim somando presenças poucas, alternadas com longas ausências. Sempre, antes de acabarem as saudades, já ia saindo, era só o tempo de deixar a mulher prenhe.
No mundo do risco a vida transforma a pessoa, os valores tornam-se outros, a convivência social torna-se estranha. A família e tudo mais são apenas agregados à vida do cidadão. A família não é passado, não é futuro, é só o momento presente. É o começo de se ir contra hábitos e costumes.
No garimpo estão as roupas de que se gosta, os papéis que sempre se guarda. Junto às peças velhas que se usa, a faca antiga, a espingarda, aí é que se mora. A geografia pouco importa, tanto faz onde se fica, ou aonde se vai. Dificilmente uma família que se virou como pôde, estruturando-se com a saída do homem, aceita esse tipo de condição.
Acontece o choque da ausência, e some até a figura da traição amorosa, porque se sabe que a mulher, que ficou lá atrás, perdeu o interesse, o parceiro não apareceu, e também desacreditando um pouco no que ele foi fazer, vai vivendo acostumada a uma liberdade não pedida, e totalmente consentida.
Lá, lonjão, o homem arruma outra, e está tudo certo, tudo bem. A maioria não liga, ninguém liga, está tudo certo, está tudo bem. Não importa muito a figura do seu romance, a personagem da sua vida é a que está com ele naquele momento e instante. No mais, da companheira de longe, que manda bilhetinho com foto, pode perturbar os sentimentos, e não traz obrigações. A companheira que traz responsabilidades não serve, e o sujeito quer continuar com aquela vida lá e “aquela” de lá. Para não dizer que só falo da vida alheia, confesso que tal vivenda acabou acolhendo também a mim em seus braços.
* José Altino Machado é jornalista, escritor e garimpeiro